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Aborto.

Texto de Renata Silver:

Tive um filho sozinha. Não por escolha, mas por falta opção. Quer dizer, opção eu tinha, sim: mesmo clandestino, o aborto é uma realidade corriqueira em qualquer cidade do país. Não optei por formar uma família sem um companheiro, mas a gravidez aconteceu e eu a levei adiante.

Assim como eu, milhões de mulheres no mundo todo criam seus filhos sem pais. As estatísticas mostram que, no Brasil, o número de mulheres que são chefes de família, sem maridos por perto, chegou a 18,1% do total de lares. Os dados são do IBGE – PNAD 2003. Estes lares são chefiados por mulheres por três motivos básicos: divórcio/separação, abandono pelo cônjuge e escolha, a chamada "produção independente". Este último é o motivo com menor incidência.

Não é cena rara vermos uma mulher levando pela mão "uma penca" de filhos e nenhum marido para ajudar nas despesas. Foi para facilitar a vida destas mulheres que a então deputada estadual Heloneida Studart (PT-RJ) criou a lei que garante às mulheres carentes o teste gratuito do DNA para que elas, com a comprovação da paternidade, pudessem exigir judicialmente dos pais de seus filhos o pagamento da pensão alimentícia – e não pagá-la é uma das poucas coisas que dão cadeia, sem apelação, neste país.

E por que falar de mães solteiras? Porque, para muitas, o aborto poderia ter sido uma opção, mas, por motivos vários, não foi. Por razões que vão da financeira à religiosa, passando pela simples e natural vontade de ter filhos, estas mulheres não interromperam a gravidez. Eu fui uma que levou a gestação até o fim. E não me arrependo.

Mas, e daí? Isto é assunto meu e de minha família. O Estado não pode interferir na decisão das mulheres de terem ou não os filhos que forem frutos de gestações não planejadas ou indesejadas. Assim como decidi ter meu bebê, poderia ter decidido interromper a gravidez. Se é pecado, crueldade ou seja lá o que pensem os opositores do aborto, isso é da conta de cada uma e o governo não pode ser dono dos corpos das mulheres e dos homens que nascem sob sua bandeira. Tenho cá minhas convicções religiosas e acredito que todo mundo presta contas com Deus do que faz durante a vida. A mulher que fez um aborto vai prestar contas, e só Deus poderá julgá-la. Tenha ela decidido abortar por si só ou por pressão do companheiro ou da família, o peso de seus atos será só dela. Ninguém tem nada a ver com isso. Muito menos o governo.

A maioria das religiões condena veementemente o aborto. Ok, este é o papel delas, e assim sempre foi desde o início dos tempos: definir as regras sob as quais seus fiéis vão viver. Se aborto é pecado ou não, cabe aos teólogos e sábios das diversas igrejas decidir. Mas estes homens e mulheres não podem interferir no funcionamento do Estado. O presidente Lula deixou bem para o Papa Bento XVI que o Estado brasileiro é laico e a Igreja – seja católica, protestante, neopentecostal, zen-budista, umbandista, hare-krisha ou qualquer outra – não tem que tratar das coisas laicas. "A César o que é de César e a Deus o que é de Deus", disse Jesus, a respeito dos impostos. Também serviria para as leis.

O argumento da saúde pública vem sendo tratado como desculpa esfarrapada pelos opositores do aborto. Eles alegam que o Estado não tem que arcar com a despesa decorrente da irresponsabilidade das mulheres que engravidam sem planejar. Isto é, no mínimo, burrice, desconhecimento total da realidade brasileira. Ora, muitas mulheres ficam grávidas porque não têm instrução suficiente para entender os métodos contraceptivos!!! Quantas acham que devem tomar pílula anticoncepcional somente nos dias em que têm relações? Quantas confundem os dias do período fértil com os "liberados" e fazem sexo justamente quando estão ovulando? Quantas são vítimas da violência doméstica e são estupradas por seus próprios companheiros? E as meninas que sofrem abuso sexual dentro de casa? Estes são casos em que a omissão do Estado – em dar educação adequada e em proteger as mulheres vitimizadas por companheiros e parentes – provoca a gravidez indesejada. Omisso, o poder público tem obrigação de, pelo menos, oferecer reparação, uma alternativa a uma gestação que pode resultar no abandono da criança à própria sorte, já que, sabemos, o Estado falha também em proteger as crianças desamparadas.

Quanto ao custo do procedimento médico propriamente dito, o argumento não poderia ser mais válido. Todos os dias, os hospitais da rede pública atendem milhares de mulheres com problemas decorrentes de abortos mal-feitos. Muitas perdem o útero, outras tantas morrem de hemorragia por serem encaminhadas ao tarde demais ao hospital – já que o aborto é crime e os médicos são obrigados a notificar os clandestinos, elas temem ser presas. Ocupam leitos, gastam medicamentos e curativos, necessitam da atenção de médicos e enfermeiros. Umas tantas são salvas por procedimentos médicos que custam milhões por ano ao Estado. Ora, o gasto já existe, oficializar o aborto na rede pública vai apenas oferecer segurança às mulheres. Com a oficialização, psicólogos e assistentes sociais teriam ainda a oportunidade de orientar as mulheres que abortaram e lhes dar uma chance de evitar que o problema se repita!

Na verdade, o que os conservadores pretendem com a proibição do aborto é preservar a miséria, mãe de toda exploração. Sob o argumento do pecado, muitas religiões controlam os atos de seus fiéis que não questionam o que há por trás da campanha que pretende manter o aborto como crime.

Mesmo em situação difícil, optei por ter meu filho. Mas podia ter optado por não ter. E prefiro viver num país onde não precisaria correr riscos – de cadeia ou morte – por isso.


Renata Silver

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